Relacionamentos conjugais consistem, amiúde, em tremendos e quase contínuos pesadelos.

A mentira hollywoodiana do romance perfeito, como prêmio de felicidade a alguém que conquistou arduamente seu direito ao triunfo, teve sua matriz no trovadorismo medieval, mas parece iludir e destruir vidas inteiras, aos milhões, século sobre século, sobremaneira nesta quadra em que o anseio por idílios simplesmente inexistentes se alastra qual uma metástase intelecto-espiritual sem bordas.

Ilusões similares se revelam na já tradicional cobiça insaciável por riqueza e poder, na perseguição da celebridade a todo custo em redes sociais, na busca da juventude eterna, em tratamentos estéticos e cirurgias plásticas que, não raro, deformam beldades, assemelhando-as a bonecas de mau gosto, e até em fantasias bizarras, como as que promovem o delírio da imortalidade no corpo físico, alardeadas pelas diversas correntes do transumanismo e iniciativas congêneres, a exemplo dos literais e definitivos desligamento ou reversão genéticos do envelhecimento, processo natural e mesmo desejável para seres em evolução.

Frequentemente, veem-se casais heterossexuais, ainda que com filhos(as) em fase infantojuvenil e o apoio de uma cultura heteronormativa, despedaçarem seus laços maritais em estrepitosos e traumatizantes divórcios, com o sofrimento agudo não só dos próprios cônjuges-sócios(as) na parentalidade, mas também dos(as) menores de idade envolvidos(as).

Ninguém imagine, então, que transcorra sem desafios um casamento gay, na sociedade LGBTfóbica em que vivemos. Eles são de todo intraduzíveis em linguagem humana, ainda mais para alguém como eu, que exerço a função de orientador espiritual, com o elemento agravante adicional de me assumir médium publicamente, há mais de trinta anos, diante de todos os segmentos culturais e não apenas de uma ou outra comunidade minoritária, como aquela a que pertenço, mantendo, concomitantemente, múltiplas frentes de combate a preconceitos, com destaque para a misoginia, o racismo e o “antirreligiosismo” – permitam-me o neologismo.

Não se trata sequer de falar de questões na seara sexual propriamente. Esse não é o problema que eu faceie com Wagner, em nosso cotidiano – e, a rigor, não é o cerne dos conflitos conjugais de ninguém, em minha opinião.

Sexo se encontra facilmente à venda, para indivíduos que queiram, de fato, apenas isso, seja com profissionais da área ou com suas variantes mais baratas, na tal “indústria do entretenimento adulto”, que deveria ser qualificada, a meu ver, como “emocionalmente adolescente”, embora haja adolescentes que, mais maduros(as), não se interessam por essa ordem de “entretenimento”, cuja produção foi tetricamente potencializada pela era da internet, com transmissões de vídeo em alta qualidade, à disposição de quase qualquer pessoa, na tela de um mero dispositivo celular.

Tenho que permanentemente enfrentar uma contramaré mental de ódio e horror – assim como meu esposo, parcialmente, porque sou eu “o cara ante as câmeras”. Licença para enfatizar: incomensurável horror do ódio a LGBTs, pelo mero direito de existirmos… E, mesmo quando admitidos(as) na realidade social, familiar, profissional, religiosa, não desfrutamos de espaço à dignidade, como se não merecêssemos ser tratados(as) em regime de justa e devida igualdade.

Que ninguém se permita engabelar pela diabólica fábula da ventura vivenciada tão só a dois – ou a duas. Felicidade é uma experiência íntima que, se verdadeira, pode e deve ser partilhada com os semelhantes.

As personalidades mais felizes, em sua esmagadora maioria, ou em sua totalidade – estou convicto disso –, não o são por causa de seus casamentos, tanto que os cônjuges normalmente não estão entre seus entes mais amados.

Se há relativa felicidade conjugal, como no caso do meu consórcio com Wagner, outros fatores necessariamente constituem as legítimas geratrizes da realização pessoal: o atendimento a vocações (incluindo a profissional), a partilha do autêntico amor parental, a vivência profunda de um ideal pelo bem comum e um propósito espiritual a viver.

Era de distopias, mediocridade e mesquinharia generalizadas esta que atravessamos na “modernidade tardia”, tendo todos(as) que arrostar, “de quebra”, ameaças apocalípticas diversas e simultâneas, com realce para a ecológica e a bélico-nuclear.

Que não nos deixemos ludibriar pelo canto da sereia da felicidade em pílulas, em contas bancárias inchadas ou em vidas editadas, nas vitrines digitais da mentira em massa…

Em meio ao caos da desconstrução do moralismo e do convencionalismo arquimilenares e castradores, entrementes, encontraremos a oportunidade criativa histórica e sem precedentes de ressignificarmos a existência e a nós mesmos(as), sem simplismos ou fórmulas prontas, à medida que travarmos uma batalha constante, deliberada e incansável, dentro e fora de nossas mentes, por expressar quem realmente somos, progressivamente, para que assim possamos contribuir, de modo substancial, com o bem-estar de nossos irmãos e irmãs em humanidade.

Benjamin Teixeira de Aguiar
LaGrange, Nova York, EUA
2 de junho de 2023

1. Este é um imprescindível complemento ao artigo “Wagner, meu esposo”.