Benjamin Teixeira
pelo espírito
Gustavo Henrique.

No final dos anos ’40 do século passado, esta conversa se deu na capital brasileira, à época a linda cidade do Rio de Janeiro, através de uma comunicação telefônica:

– Alô, Melina? Como vai, querida?
– Bem, Carmem. E você?
– Tinha que lhe ligar ainda agora. Não sabe da última, meu bem! Lembra-se do Padre Honório, aquele com cara de santinho?
– Sim, como não?
– A Marluce me confidenciou, pessoalmente, que, quando no confessionário com ele, ouviu uma seqüência de conselhos que a fez se decidir por nunca mais procurá-lo.
– Pode soltar a bomba.
– Terei, porém, que lhe pedir sigilo ab-so-lu-to, porque vou até falar de segredos dela!…
– ‘Magina, querida! Não sabe que pode confiar em mim completamente? Minha boca é um túmulo!…
– ‘Cê acredita que a Marluce foi lá se abrir sobre o fato de a filha ter… sabe como é… ter se perdido… ter feito sexo antes do casamento, e o padre foi capaz de dizer que não havia nada demais nisto?
– Que pouca vergonha! Mas em que, por Cristo, ele se baseou para afirmar isto?
– Teria dito ele que o amor é o que importa para Deus, e que o sagrado sacramento do matrimônio não passa de uma formalidade social em muitas aspectos dispensável!
– Que horror!
– Mas isto é o mínimo! Teve ainda o desplante de afirmar que o sexo é uma dádiva de Deus para as criaturas, e que é fonte de prazer e de alegria, e não de pecado!!! E, não achasse pouco, ainda com ares de moralista, concluiu esta assertiva com um “desde que seja desfrutado com equilíbrio, moderação e respeito pelo outro”. DESFRUTADO! Você agüenta esta????
– Meu Deus! Que escândalo! Um homem de Deus!
– Ah… mas não pára por aí, não. O pior ainda está por vir…
– Solta tudo, querida. Já estou nervosa!
– A Marluce foi suficientemente corajosa para demonstrar seu estupor ao padre Honório. E disse algo como: “Padre, como o senhor, um homem de Deus, diz algo do gênero? Sobremaneira quando se sabe que nem sequer vive o sexo, na condição de celibatário?” Sabe qual foi a resposta do padre, aquele charlatão de meia tigela?
– Não faço a menor idéia!… Socorro! O que será que ele disse?
– Que o celibato era uma doença social, que gerava perversões – veja que patético!: logo ele que deu-se a falar tantas devassidões assim… o depravado! – Que no futuro os padres deveriam se casar, como os pastores evangélicos – acredita que ele usou os loucos dos evangélicos, aquela “gentinha”, como modelo? – e que, se possível, os padres já deveriam pleitear hoje mesmo pela vivência de sua sexualidade, ainda que contra as orientações da Santa Madre Igreja!!!…
– Estou chocada!!! Logo ele, com aquela cara de bom moço! Como pude me enganar tanto???
– Pois é, querida! Veja como as aparências enganam, e como estamos num mundo perdido!… Até os padres andam “moderninhos” deste jeito. O Rio não é mais aquele…
– Mas como é que ele propôs que os padres vivessem sua sexualidade já de agora, contra os comandos da nossa Santa Madre Igreja??? – Isto é sacrilégio!!!
– Teria dito ele, segundo Marluce, que somente com este confronto um dia poderia acontecer a mudança de pensamento da instituição, como aconteceu no passado em relação a outros assuntos. Os heréticos – acredite que ele disse isto – agem, muitas vezes, em nome de Deus!!!
– Cruz-Credo! Este homem ‘tá com o diabo no corpo! Será que o arcebispo está sabendo disto?
– Creio que não, ou ele já teria sido banido da capital. E tem mais… Amor… promete mesmo segredo???
– Claro, Carmen! Quando foi que traí sua confiança?
– Eu ouvi dizer por aí que… Lembra daquela paroquiana da igreja de Honório, uma jovem bonita que não namora ninguém e diz que não vai casar, tampouco manifesta qualquer inclinação para entrar no convento?
– Sim! Sim! Como esqueceria??? Com aquele arzinho de “prafrentex”!…
– Pois é… É ela!
– É ela, o quê, Carmem???
– A “mulher do padre”!
– Não diga! Ele realmente aplica o que faz! Ele tem uma amante!!!!…
– Exatamente! De fonte segura!
– Céus! É por isto que minha fé anda abalada! Se até os padres falam e agem assim, em quem mais se pode confiar???
– Ah, Melina, estou arrasada também! Para completar, tive que despachar ontem a criada de mais de cinco anos! Não sei mais como agir com esta gente. Cá entre nós, digo-lhe de todo coração, como confidenciei a você o resto de nossa conversa: acho que houve algum erro na abolição da escravatura. É claro que os pretos são uma sub-raça! Assalariados, como gente livre, andam cheios de vontades! Turba preguiçosa e safada! Deveriam ao menos ter ficado pela África mesmo! Não agüento mais a convivência em mesmo nível de cidadania com eles. O morros deveriam ser isolados, como campos de concentração.
– Nossa, Carmem! Você realmente não gosta de negros! Mas não precisa se preocupar. Nunca estarão no mesmo nível de cidadania nosso, como você falou. Sempre serão cidadãos de segunda classe.
– Você se surpreende de eu não gostar deles. E quem gosta, Melina??? Você?
– Deus me livre! Não tenho amizade com eles. Mas não os odeio tanto.
– É que a Dona Marta foi sua ama de leite. Você não pensa direito quando se fala de negros. É muito emotiva em relação a eles. Mas eu lhe garanto que esta raça não presta. Não é à toa, que, por sinal, o Padre Honório deixa os negros se apinharem na igreja, sem mandar ninguém sair, junto com as mais finas madames da Tijuca, você acredita?
– Não acho isto tão chocante!
– Você é quase uma santa, Melina. Para mim, isto é imperdoável! Bem… vou ter que desligar… para telefonar para outras pessoas… É… tenho um assunto sério a tratar…
– Não vai falar para outras pessoas estas histórias do Padre Honório, vai?
– ‘Magina, querida! Você é a única em quem confio tudo!

E se despediram afetuosamente, em poucos segundos a mais de conversa. O fato, porém, é que Carmem, madame desempregada, ociosa e cheia de maldade no coração e na mente, passou toda a manhã telefonando para quem conhecia, para espalhar a “bomba”, para ainda hoje estar disseminando conversas.. em regiões desérticas e horripilantes do dimensão extra-física de vida, empunhando galhos de árvores ressequidos qual se fossem o gancho de um aparelho telefônico, a falar… falar… sozinha!… Proibida de conviver com quem quer que seja, tratada por autoridades do Plano Maior, como um “câncer humano relacional” a ser alijada do convívio social até a cura de seus traços mais malévolos, por ora ainda longe de ser divisada. Já o padre Honório, tão atacado por seus coevos, por sua conduta e discurso vanguardistas, é hoje guia espiritual de extensa comunidade da igreja católica romana, na própria capital carioca, conduzindo o pensamento cristão, entre seus pupilos, em suas expressões de modernidade e abertura ao novo.

Passados 60 anos, prezado leitor, a conversa entre as duas personagens reais causa riso, quando não repulsa. Mas já foi o mais fino “falar aberto” entre pessoas cultas no país. Hoje, igualmente, há destas palestras francas, permeadas de preconceito e maldade, que circulam como “dignidade ferida” e “reação honesta” de “gente decente”.

Só Deus conhece o fundo dos corações para julgar corretamente, como nos lecionou o Mestre Jesus. E não nos esqueçamos: as verdadeiras degenerescências e as grandes revoluções de costumes e conceitos costumam parecer idênticas. Só quando uma nova etapa de progresso de idéias e de comportamento se estabelece na coletividade é que o que era visto como indecente passa a ser compreendido como conduta moderna e consciente. Mas, quando isto se dá, outros valores e atitudes passam a ser vistos como licenciosos e imorais. É um fenômeno inexorável: faz parte do processo evolucional.

Portanto, cuidado com o que ouve, pensa e fala. Talvez esteja sendo injusto e, quanto mais inflamado se perceba – recorde-se dos horrores perpetrados em nome de Deus em tempos idos e presentes – mais suspeito estará você de estar sendo movido pelas paixões do preconceito.

Deus, porém, mais cedo ou mais tarde, sempre faz justiça aos vanguardeiros do progresso.

(Texto recebido em 13 de outubro de 2005.)