Aracaju, 1977. A capital sergipana, em seus impressionantes 250.000 habitantes da época, era uma cidade térrea. Pouquíssimos edifícios despontavam aqui ou ali, com a população mais de três vezes menor que a de hoje. O Edifício “Estado de Sergipe” – mais conhecido por “Maria Feliciana” – singrava os ares, desafiador, imponente, quase arrogante para uma capital nordestina – era a mais alta construção de todo o Nordeste brasileiro – com incríveis 27 andares (!), um verdadeiro “Empire State Bulding” do Cariri (havia mesmo merecido ser capa da revista Manchete, o mais importante semanário do país por aqueles dias, no já distante ano de 1972, numa fotografia de três dimensões, em técnica japonesa de impressão, que era coqueluche por então).

Morávamos na distantíssima Av. Acrísio Cruz… o fim do mundo… (que hoje está no miolo de todo o burburinho da moderna metrópole sergipana, de quase um milhão de habitantes). Sergipe… o estado das contradições… O menor membro da União Brasileira… uma semente de gigantes… Aqui, três das dez maiores redes de supermercados do país despontaram, hoje em fragorosas negociações internacionais, como o Bom Preço e o G. Barbosa (a outra rede é a “Paes Mendonça”). Um dos mais famosos juristas brasileiros do mundo, se não o maior, Tobias Barreto, que merece mesmo o destaque de seu busto, em praças de cidades alemãs, também nasceu aqui. Um dos maiores espíritas de todos os tempos, e um dos mais elevados espíritos reencarnados no seu tempo, à altura evolutiva de Bezerra de Menezes, por afirmação de Chico Xavier, Francisco Leite de Bittencourt Sampaio, também reencarnou em Sergipe. Por isso me disseram, 16 anos mais tarde, no já mais próximo 1993, quando quis sair de minha terra natal, para iniciar o projeto de divulgação em massa do espiritismo pela televisão, em outro estado: “Não saia do coração do ‘Coração do Mundo’: é aqui que tudo vai começar…” A doce mentora espiritual Eugênia fazia alusão à metáfora criada pelo espírito Humberto de Campos, através da psicografia ímpar de Chico Xavier, para descrever a missão espiritual da nação brasileira, fazendo, como o espírito, referência à forma geográfica do estado que, como o Brasil, assemelha-se a um coração humano, e localizado, simbolicamente, n’onde seria “o lado esquerdo do peito do país”…

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Era 26 de outubro: completava 7 anos de idade. A idade da razão e da “responsabilidade” – alertaram-me muito para isso. A partir dali, sentia, deveria ser gente de verdade, não mais um “projeto de gente” que não merecia crédito. Sem dúvida, foi um rito de passagem para mim. Pedi para ficar acordado até bem mais tarde, já que a comemoração em família fora marcada para o dia anterior. Queria estar acordado (sempre detestei dormir – recentemente é que comecei a fazer as pazes com esta necessidade fundamental do corpo), lúcido, dono da situação, no momento em que atravessássemos o limiar da meia-noite. Protelei quanto pude o instante fatídico do ir para a cama… Vencer a “morte” da noite era maravilhoso para mim, era um caso de consciência e de honra, sobremaneira em datas especiais corno aquela, julgava eu.

4 horas da manhã. Não havia mais argumentação, que pudesse apresentar, que justificasse minha estada entre os últimos adultos embriagados que diziam estar ali por minha causa.

“- Benjaminzinho, agora vá para a cama.”

Tive que aquiescer… a sina trágica das crianças… fadadas a obedecer os adultos em todas as suas avaliações do que deve ou não deve ser feito, do que pode ou não pode ser dito, do que se pode ou não ser (!) – isso então era bárbaro para mim! Abominava, com todas as veras d’alma, minha condição de criança. Dizia a minha mãe, por aqueles dias, que não via a hora de ficar adulto. Era humilhante, triste, medonho viver sob as ordens e os juízos alheios, impedido de fazer escolhas, impossibilidade de ser o si mesmo!

– Toda criança diz isso, meu filho. Quando você ficar adulto, vai ter saudades de seu tempo de criança… – respondeu-me mamãe, por mais de uma vez, complacente. Ato contínuo, contudo, eu respondia, indignado, em tom profético…:

– Pois em mim, você verá, mamãe: quanto mais velho eu for, mais feliz serei. E um dia vai me ouvir dizer, adulto: graças a Deus me livrei da infância!

Não tiraria uma única palavra ou acrescentaria outra a essa previsão, hoje, na minha condição de quem vai atravessar outra barreira cultural: a dos 33 anos, dentro de poucos dias, a tal simbólica “idade de Cristo”. Digo simbólica, porque, em verdade, Jesus não tinha 33 anos quando foi sentenciado à morte, pelo mais ignominioso tipo de pena capital, em uso pelo Império Romano, naqueles dias, reservado apenas para os mais abjetos criminosos. Como houve um erro na definição do calendário gregoriano (ou cristão) que utilizamos, o Cristo, em verdade, nasceu por volta de 4 anos antes da nossa Era (alguns autores sugerem que esse erro de contagem tenha sido de 3 a 7 anos). Jesus, portanto, era um homem de quase 40 anos – um ancião para a época – quando foi supliciado e pregado a uma cruz. Todavia, pelo vanguardismo administrativo e histórico do extraordinário povo romano, temos documentada a data de morte de Nosso Senhor: 7 de abril de 33. Eis porque, então, temos a tal idade-marco considerada “sagrada” pelas impressões supersticiosas do inconsciente coletivo. Como, todavia, o que é mental é, em certa medida, real, por estar impregnado de conteúdo psíquico, cultural, emocional, histórico, eis-me aqui nesse imbróglio de ideias, fazendo uma boa verborreia terapêutica, em público (não sem expressa autorização dos mentores espirituais, nesse sentido).

Bem… mas voltando ao 26 de outubro de 1977. Esgotado em minha logorreia melodramática para procrastinar minha ida à cama (acho que realmente deveria ter seguido o rumo da abandonada carreira jurídica – brincadeirinha!…), levantei-me solenemente do ambiente (era um “porre” quando criança: muito pedante em meu “muito” entender do mundo – imagine!), despedi-me formalmente dos que eram agraciados pela condição de adultidade que tanta invejava, e fui-me, sozinho… para o meu quarto. À porta da cozinha (a festa acontecia nos fundos da casa), que dava entrada para o corpo da construção, estaquei, e estiquei demoradamente os olhos para o céu… (Aquele foi um dos momentos mais marcantes de toda a minha infância.) Fitando o céu estrelado… muito estrelado naquela noite sem Lua, minutos antes do alvorecer, respirei fundo e, em dramático solilóquio, disse para mim mesmo, em tom de verdade impressionante: “- Agora… tenho 7 anos!”

Dou boas gargalhadas sozinho, lembrando-me daquele garotinho parado à porta de casa, com ares de grande filósofo, a declarar-se gente para si mesmo, diante das potências do Cosmo… Que coisa maravilhosa e libertadora podermos rir de nossas infantilidades… Tive que crescer muito para poder enxergá-las em mim e poder, então, rir gostosamente de todas elas. Fui um simulacro bizarro de adulto sisudo, quando criança… Sou, às vezes, um adulto-pateta, no início da maturidade em que adentro… Quem sabe, na terceira idade, consiga acertar o compasso… Tenho muitas esperanças para os meus 65 anos em diante. Se Deus me permitir viver esse tempo, no transcurso da atual reencarnação, é lá que sinto poder encontrar a realização plena como indivíduo, respeitados os limites de minha precária evolução espiritual. E, sinceramente, lamento, do fundo do coração, quem deplora o passar dos anos, que luta para parecer mais jovem… e ser mais jovem… Creio que realmente são muito jovens… no juízo!!! Lutar contra o inexorável… e… pior: renunciar o desfrute dos louros inimitáveis da maturidade…

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Chegamos ao século XXI… que parecia que nunca chegaria, para quem tem minha idade ou um pouco mais. Quando me visualizava com 30 anos (completados em 2000)… tinha certeza de que se tratava de um sonho encantado que nunca se realizaria… de tão distante. Vou completar, neste domingo, 33, e me orgulho de cada ano vivido, ainda achando, todavia, que fiz pouco, que aprendi pouco, que amei pouco, apesar de ter começado tudo mais cedo que todo mundo (inclusive meu primeiro beijo na boca: tinha 6 anos quando o fiz… mas juro que ela era mais velha (risos: ela só tinha um ano a mais que eu) – só não posso revelar a identidade da cúmplice, porque ela é hoje uma pacata e decente senhora casada). O garoto de 7 anos, no longínquo 1977, converteu-se no adolescente sorumbático e pessimista, que temia o armagedom nuclear (vivíamos tempos de Guerra Fria), entre os 13 e 15 anos (1983-1985), e que, aos 17 anos, após uma longa estrada de crises existenciais e leituras confusas de filosofia e esoterismo, encontraria o caminho para as magnas respostas sobre a vida, na leitura do pedagogo francês que ficou famoso, sob a alcunha de Allan Kardec.

Vivemos outros tempos… outros ventos… Uma nova onda civilizacional surgiu e toma corpo. Agora, como se todos estivéssemos vivendo, cultural e coletivamente, o início da maturidade, os metafóricos 33 anos… a “idade de Cristo”,… experienciamos um parto psíquico e social de crises simultâneas e complexas, intrincadas e dolorosas, que vão do terrorismo internacional, às repercussões obscuras do processo de globalização das economias nacionais e continentais. Vivenciamos um drama planetário de contradições diversas, multidimensionais, étnicas, religiosas, psicológicas, qual o Cristo apregoado à cruz… suspenso do chão… sem haver ascendido aos céus… pagando o preço dessa subida incompleta, com os cravos a Lhe trespassarem as carnes vivas… Nós também vivemos o entrechoque e o entreCRUZamento de culturas discrepantes, de grandes blocos monolíticos de civilização, como os do Ocidente, do Oriente Extremo e do Oriente Médio, das tendências à espiritualidade, à ecologia e ao humanismo, em contínuo embate com as forças do consumismo, do capitalismo eletrônico (a flutuação eletrônica-instantânea das bolsas de valores por todo o globo)… também crescentes…

Estamos sangrando… na cruz de todos os conflitos, paradoxos e incoerências que sejam possíveis… e muitos que nunca julgamos imagináveis… das rupturas, escândalos e colapsos políticos, religiosos, econômicos… sociais… humanos… ecológicos!

A vida periclita na Terra… a biosfera pede socorro… e nós somos parte dela!… Mas… se muito sofremos e se muito nos sentimos imergir e chafurdar, numa lama fétida de incertezas e dubiedades filosóficas, morais e existenciais, lembremos que a crucificação mística de Jesus durou apenas algumas horas… e que a “ressurreição de vida eterna” seguiu-se-lhe, após outro rápido período de angustiante modorra… a “morte” na tumba, que durou apenas um dia e meio. Poucas horas de dor… a preparem séculos sem-fim de glória e plenitude…

É assim que devemos encarar os dramas e as angústias sofridos pelas sociedades e moles humanas atormentadas da atualidade…
Vivemos o horror do parto civilizacional… de uma nova era que surge para o mundo… a Era da Felicidade…
Somos a lagarta que se contorce no interior da crisálida… a criança estrangulada no ducto vaginal… a semente que se arrebenta, na cova escura da terra… Somos o ser humano que se aturde… na aurora da divindade latente, que se nos desperta… em longo e milenar parto evolutivo…

É hora de renascer… e crescer… para o infinito… É hora de ser… e esquecer o passado, aplicando-o, construtivamente, no presente… para vivermos e saltarmos em direção ao futuro… e mergulharmos, definitivamente… na eternidade!… uma eternidade que começa agora e que é composta por infinitos instantes eternos… a eternidade da plenitude de quem é, sabe o que é… e sabe para onde vai!!!…

Benjamin Teixeira de Aguiar 
23 de outubro de 2003